Zygmunt Bauman
AMOR LQUIDO
Sobre a fragilidade dos laos humanos
Traduo:
Carlos Alberto Medeiros
Prefcio
Ulrich, o heri do grande romance de Robert Musil, era como anunciava o ttulo da obra Der Mann ohne Eigenschaften: o homem sem qualidades. No tendo qualidades prprias, herdadas ou adquiridas e incorporadas, Ulrich teve de produzir por conta prpria quaisquer qualidades que desejasse possuir, usando a perspiccia e a sagacidade de que era dotado; mas nenhuma delas tinha a garantia de perdurar indefinidamente num mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisvel.
O heri de seu livro Der Mann ohne Verwandtschaften o homem sem vnculos, e particularmente vnculos imutveis como os de parentesco no tempo de Ulrich. No tendo ligaes indissolveis e definitivas, o heri de seu livro o cidado de nossa lquida sociedade moderna e seus atuais sucessores so obrigados a amarrar um ao outro, por iniciativa, habilidades e dedicao prprias, os laos que porventura pretendam usar com o restante da humanidade. Desligados, precisam conectar-se Nenhuma das conexes que venham a preencher a lacuna deixada pelos vnculos ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da permanncia. De qualquer modo, eles s precisam ser frouxamente atados, para que possam ser outra vez desfeitos, sem grandes delongas, quando os cenrios mudarem o que, na modernidade lquida, decerto ocorrer repetidas vezes.
A misteriosa fragilidade dos vnculos humanos, o sentimento de insegurana que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laos e ao mesmo tempo mant-los frouxos, o que este livro busca esclarecer, registrar e apreender.
Carecendo da viso aguda de Musil, tanto quanto da riqueza de sua palheta e da sutileza de suas pinceladas de fato, de quaisquer dos requintados talentos que fizeram de Der Mann ohne Eigenschaften um retrato definitivo do homem moderno , devo restringir-me a traar um painel de esboos imperfeitos e fragmentrios, em lugar de tentar produzir uma imagem completa. O mximo que posso esperar obter um kit identitrio, um retrato compsito capaz de conter tanto lacunas e espaos em branco quanto sees completas. Mesmo essa composio final, contudo, ser um trabalho inacabado, a ser concludo pelos leitores.
O principal heri deste livro o relacionamento humano. Seus personagens centrais so homens e mulheres, nossos contemporneos, desesperados por terem sido abandonados aos seus prprios sentidos e sentimentos facilmente descartveis, ansiando pela segurana do convvio e pela mo amiga com que possam contar num momento de aflio, desesperados por relacionar-se. E no entanto desconfiados da condio de estar ligado, em particular de estar ligado permanentemente, para no dizer eternamente, pois temem que tal condio possa trazer encargos e tenses que eles no se consideram aptos nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a liberdade de que necessitam para sim, seu palpite est certo relacionar-se
Em nosso mundo de furiosa individualizao, os relacionamentos so bnos ambguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e no h como determinar quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam embora em diferentes nveis de conscincia. No lquido cenrio da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalncia. por isso, podemos garantir, que se encontram to firmemente no cerne das atenes dos modernos e lquidos indivduos-por-decreto, e no topo de sua agenda existencial.
Relacionamento o assunto mais quente do momento, e aparentemente o nico jogo que vale a pena, apesar de seus bvios riscos. Alguns socilogos, acostumados a compor teorias a partir de questionrios, estatsticas e crenas baseadas no senso comum, apressam-se em concluir que seus contemporneos esto totalmente abertos a amizades, laos, convvio, comunidade. De fato, contudo (como se segussemos a regra de Martin Heidegger de que as coisas s se revelam conscincia por meio da frustrao que provocam fracassando, desaparecendo, comportando-se de forma inadequada ou negando sua natureza de alguma outra forma), hoje em dia as atenes humanas tendem a se concentrar nas satisfaes que esperamos obter das relaes precisamente porque, de alguma forma, estas no tm sido consideradas plena e verdadeiramente satisfatrias. E, se satisfazem, o preo disso tem sido com frequncia considerado excessivo e inaceitvel. Em seu famoso experimento, Miller e Dollard viram seus ratos de laboratrio atingirem o auge da excitao e da agitao quando a atrao se igualou repulso ou seja, quando a ameaa do choque eltrico e a promessa de comida saborosa finalmente atingiram o equilbrio
No admira que os relacionamentos estejam entre os principais motores do atual boom do aconselhamento. A complexidade densa, persistente e difcil demais para ser desfeita ou destrinchada sem auxlio. A agitao dos ratos de Miller e Dollard resultava frequentemente na paralisia da ao. A incapacidade de escolher entre atrao e repulso, entre esperanas e temores, redundava na incapacidade de agir. De modo diferente dos ratos, os seres humanos que se veem em tais circunstncias podem pedir ajuda a especialistas que oferecem seus prstimos em troca de honorrios. O que esperam ouvir deles algo como a soluo do problema da quadratura do crculo: comer o bolo e ao mesmo tempo conserv-lo; desfrutar das doces delcias de um relacionamento evitando, simultaneamente, seus momentos mais amargos e penosos; forar uma relao a permitir sem desautorizar, possibilitar sem invalidar, satisfazer sem oprimir
Os especialistas esto prontos a condescender, confiantes em que a procura por suas recomendaes ser infinita, uma vez que nada que digam poder tornar um crculo no circular, e portanto passvel de ser transformado num quadrado Suas recomendaes so copiosas, embora geralmente se resumam a pouco mais do que elevar a prtica comum ao nvel do conhecimento comum, e da ao status de teoria autorizada e erudita. Gratos beneficirios dessas recomendaes percorrem as colunas de relacionamento em publicaes sofisticadas e nos suplementos semanais de jornais srios ou nem tanto, para ouvir o que queriam de pessoas que esto por dentro (uma vez que so tmidos ou envergonhados demais para falarem por si mesmos), para espreitar os feitos e procedimentos de outros como eles e conseguir o mximo conforto possvel por saberem que no esto sozinhos em seus solitrios esforos para enfrentar a incerteza.
E assim os leitores aprendem com a experincia de outros leitores, reciclada pelos especialistas, que possvel buscar relacionamentos de bolso, do tipo de que se pode dispor quando necessrio e depois tornar a guardar. Ou que os relacionamentos so como a vitamina C: em altas doses, provocam nuseas e podem prejudicar a sade. Tal como no caso desse remdio, preciso diluir as relaes para que se possa consumi-las. Ou que os CSSs casais semisseparados merecem louvor como revolucionrios do relacionamento que romperam a bolha sufocante dos casais. Ou ainda que as relaes, da mesma forma que os automveis, devem passar por revises regulares para termos certeza de que continuaro funcionando bem. No todo, o que aprendem que o compromisso, e em particular o compromisso a longo prazo, a maior armadilha a ser evitada no esforo por relacionar-se. Um especialista informa aos leitores: Ao se comprometerem, ainda que sem entusiasmo, lembrem-se de que possivelmente estaro fechando a porta a outras possibilidades romnticas talvez mais satisfatrias e completas. Outro mostra-se ainda mais insensvel: A longo prazo, as promessas de compromisso so irrelevantes Como outros investimentos, elas alternam perodos de alta e baixa. E assim, se voc deseja relacionar-se, mantenha distncia; se quer usufruir do convvio, no assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas sempre abertas.
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